Pardo é cor? O limbo da raça.
- Edu Nicola
- 5 de dez. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 12 de dez. de 2022

A vontade de escrever esse texto surgiu de uma dificuldade minha com a autodeclaração. Sempre me defini como pardo, tanto por perceber a cor da minha pele assim, como por ouvir comentários sobre ela, marcando que eu não era/sou uma pessoa branca. Mesmo me entendendo como não branco, me vi perdido por também não me ver como uma pessoa negra. Fui, por muitos, definido como “moreno” e tudo isso me gerou um desconforto que deixei guardado: o de não-pertencimento. Esse texto é o início de um processo pessoal de autoconhecimento e identificação. É, também, um espaço para que outras pessoas que possam estar passando pelo mesmo questionamento se reconheçam e se sintam pertencentes.
Esse não-lugar pode ser definido como limbo e o limbo da raça é o espaço ocupado pelas pessoas pardas. Esse lugar – que não é branco, nem preto, nem indígena – é resultado do processo de mistura de diferentes raças (miscigenação) no Brasil. Qualquer traço ou característica que fuja ao ser branco é caracterizado como “outro”. Esse "outro", ao mesmo tempo que é nomeado, não consegue se reconhecer pois sua identidade é marcada pela falta de identificação e de consciência de sua raça e origem. Se “sou negro demais para ser branco e branco demais para ser negro”, então, quem eu sou? Para tentar responder essa pergunta, vamos recapitular um pouco da história do Brasil.
A origem da miscigenação vem de um projeto de embranquecimento da população brasileira. Você não leu errado, é isso mesmo. Existiram estratégias e teorias para alcançar esse objetivo. Um desses estudos indicava que em 3 décadas desse processo o Brasil seria um “país branco” (saiba mais aqui). A pintura “A Redenção de Cam” retrata isso. De um lado, vemos uma senhora retinta com as mãos para cima agradecendo. À sua direita, sentada, está uma mulher de pele mais clara com uma criança branca no colo e, ao fundo, um homem branco olhando para o filho. O que a senhora negra está comemorando é o nascimento de um neto branco e que a sua família está embranquecendo a cada geração.

Desde o início do movimento forçado (diáspora) das populações negra e indígena, o embranquecimento foi uma estratégia de apagamento que aconteceu através da violação de seus corpos. Alguns séculos depois da diáspora, as políticas de imigração facilitaram a vinda de pessoas de países da Europa, oferecendo a possibilidade de trabalho e moradia para essas pessoas. Bem diferente da vinda das pessoas pretas para o país, não é mesmo? A história que ouvimos das 3 raças que originaram a cultura do Brasil e que, supostamente, nos faz um país diverso, é, na verdade, a história do genocídio dos povos negros e indígenas.
Depois de tudo isso, chegamos onde estamos e é aí que eu, Edu, entro nessa história. O primeiro contato que eu tive com a minha cor, ainda na infância, foi uma frase que ouvi da minha mãe: “Sempre quis ter um filho com a tua cor”. Eu não entendi muito bem o que aquilo queria dizer mas entendi que era diferente dos meus familiares por parte de mãe, que são pessoas brancas. Fui crescendo, apelidos surgiram, comentários como “queria muito ter uma pele como a tua”, “queria pegar uma cor fácil igual você” foram se tornando constantes. Dessas vivências surgiu a minha identificação como pessoa parda: nem branco, nem negro, nem indígena.
“O pardo, desde a infância, encontra-se referido com eufemismos para “negro” ou “indígena”, sendo eles “moreno”, “moreninho”, “mulato”, “indiozinho”, “marronzinho”, “café com leite” e tantos outros. Ele percebe-se, o tempo todo, racializado, mas nunca explicitamente como negro ou indígena. Então, quando questionado sobre “o que é”, talvez responda prontamente “pardo”, sem entender que pardo não é identidade racial, pardo é cor.”
Lauro Felipe Eusébio GOMES Instituto Federal de Minas Gerais
Quem se encontra nesse limbo acaba transitando entre esses dois lugares: a branquitude e a negritude. Historicamente e por construção de repertório através dos meios de comunicação, ser negro acaba sendo associado a questões negativas (olha aí a importância da representatividade). Se por um lado a negritude tem essas associações, a branquitude é constantemente reforçada como superior, bela e universal (que não precisa ser nomeada). Por isso, pessoas que se encontram no limbo da cor têm a tendência de se aproximar mais da branquitude e “se embranquecer”. E aqui, mais uma vez, eu me dou conta de como esse processo também esteve presente ao longo da minha vida: desde não pegar sol a fazer escova no cabelo.
Pessoas que estão nesse limbo tem a sua identidade apagada e abdicada. Para sair desse lugar não existe uma solução pronta, mas sim o que queremos buscar com isso: combater o racismo. Por isso, é importante pensar sobre a sua identidade racial, que pode acontecer através:
da busca por sua ancestralidade negra e indígena;
do consumo de literatura, artes, cinema e outras obras de pessoas negras e indígenas;
da procura de vivências parecidas com a sua;
da participação de eventos que discutam as questões raciais no Brasil.
É importante dizer que esse não é um checklist pronto ou um passo a passo. Cada pessoa tem seu próprio processo de identificação. Essa lista é apenas uma ideia de por onde começar. Se o embranquecimento e o apagamento de quem a pessoa parda é aconteceu ao longo da história, pela desvalorização de suas origens negras e indígenas, a valorização desses traços é um caminho de combate.
Em tempo, entendo que a identidade negra não é uma constante, mas uma variável que não depende de ter pele retinta. Dessa forma, existem não uma, mas várias maneiras de ser negro no Brasil. Importante, é claro, reconhecer que numa sociedade onde o racismo é de marca, como a nossa, negros de pele retinta (ou pretos) estão mais sujeitos a sofrer com suas expressões.
Lauro Felipe Eusébio GOMES Instituto Federal de Minas Gerais
Ao final dessa reflexão sobre a minha autodeclaração e todas as questões que cercam o limbo das pessoas pardas, não chego a nenhuma conclusão definitiva sobre mim, mas tenho pistas de por onde continuar esse processo e entendo, hoje, a importância de me apropriar das minhas origens. Super recomendo, para quem quiser ler mais sobre o assunto, o Medium da Lu Daltro e o texto que encontrei por lá do Lauro Felipe.
Referências